domingo, 21 de março de 2010

O Humano na Esfera do Divino: O canto X do Inferno de Dante

A figura de Dante Alighieri sempre traz à tona a imagem do homem medieval em sua totalidade: sua vida e obra trazem elementos tanto do homem aristocrata quanto o camponês, seja o aspecto político, seja o cristão. Dessa forma, dentre as diversas faces em que os especialistas se focam no estudo de Dante, o artigo visa identificar em sua poesia aspectos da representação humana na Divina Comédia através de análise do canto X do inferno.

Antes de ir para a análise propriamente dita, vale ressaltar em que meio o poeta vive. Nascido em 1265 na cidade de Florença, Dante vive um período de efervescência na Europa, uma vez que sua cidade natal já havia passado por um processo de crescimento surpreendente, agora sofria de uma instabilidade política proveniente de rixas entre as grandes famílias florentinas, mas, além disso, das disputas entre a Igreja e o Sacro-Império Romano Germânico.

Essa disputa se dá mais especificamente a partir do momento em que os Staufen sobem ao poder no Sacro império e passam a almejar um maior controle do Império sobre a Itália, território Germânico no período, entretanto, sob forte influência do papado. Dentro dessa disputa é que se formam duas facções que brigam nas altas esferas da aristocracia nas cidades italianas, inclusive Florença: os guelfos e os guibelinos.

Dentro da cidade de Florença, as duas facções brigariam principalmente na segunda metade do século XIII, período que engloba os primeiros anos de vida de Dante Alighieri, de família guelfa, ou seja, partidária da influência papal na cidade, mas que, entretanto, não possuía grande influência política. Dante cresce em um ambiente no qual sua família passa por dificuldades financeiras, entretanto conclui sua educação básica do período.


Na última década do século XIII Dante entra para a política, e se torna um guelfo de grande atividade. Nesse momento os guibelinos são expulsos da cidade, entretanto tem início mais um conflito entre duas facções: os guelfos se dividem entre bianchi, e neri, cada qual representando respectivamente ou uma burguesia, nesse contexto se referindo a comerciantes bem sucedidos financeiramente, do lado oposto, a aristocracia e as grandes famílias já decadentes financeiramente, mas portadores de certo prestígio.

Diante dessa disputa, cada vez mais hostil entre ambas as partes, toma-se, em 1295, a decisão, proposta por Dante, simpatizante dos bianchi, de se expulsar os membros mais exaltados de cada partido. Nesse momento um grande amigo de Dante, Guido Cavalcanti, será levado a exílio. Nessa medida os neri são os mais afetados, entretanto, quando da virada do século os brancos são expulsos da cidade de Florença, e assim Dante é exilado.

É nesse exílio que Dante escreve sua Divina Comédia, obra que, segundo Salvatore Viglio, traz a tona todo o mundo em que Dante vive. De caráter enciclopédico, apesar de se tratar de uma obra poética, a Divina Comédia possui como mérito não apenas retratar o divino. A viagem de Dante aos três destinos da alma humana é uma viagem em busca dessa alma humana, do espírito do homem medieval, e, em sentido mais amplo, de um homem universal.

Dentro dessa perspectiva, de uma obra que capta o espírito do homem medieval, é que a Divina Comédia deve ser tratada não apenas pela crítica literária. Admitindo, segundo Erich Auerbach, autor de base para a análise que segue que o homem é um ser sensível e que busca na Europa nesse momento através da representação artística uma reprodução daquilo que está gravado em seu ser, em seu espírito, então é possível captar na obra de Dante Alighieri a figura desse homem medieval em todas as suas facetas para, a partir daí, tornar possível uma melhor compreensão acerca dos paradigmas que cercavam o pensamento do homem desse período.

Quando Dante, no canto X do inferno, atinge o círculo dos hereges e dos epicuristas, lá ele encontrará dois interessantes personagens, em situações distintas: Farinata Degli Uberti, e Cavalcante di Cavalcanti, pai de seu amigo Guido Cavalcanti. O primeiro surge em meio a um diálogo entre Dante e Virgílio, surge altivo, imponente. Reconhece no falar de Dante sua estimada Florença, e inicia com Dante um diálogo focado naquilo ao qual ele estimava: a política.

Em meio ao diálogo, outra interrupção: entra em cena Cavalcante, já em posição oposta a de Farinata: abatido, pergunta ansioso pelo destino de seu filho, quer saber se está vivo ou morto. Através da resposta de Dante, Cavalcante conclui erroneamente que seu filho está morto, e cai de volta a sua cova, desesperado. O diálogo entre Farinata e Dante é retomado, quando Farinata profetiza a Dante seu exílio de Florença e explica o motivo de desespero de Cavalcante: aqueles que estão nesse círculo enxergam o futuro distante e o passado, mas o presente eles não podem enxergar.

A altivez de Farinata, a resposta de Dante a Cavalcante e a verdadeira situação dos danados nesse círculo do inferno são objetos de diversas interpretações sobre o canto. A distinção entre o momento de ambos os personagens trazem o questionamento acerca de quem é o verdadeiro danado pelo castigo do círculo. Antonio Gramsci, nos seus Cadernos do Cárcere dará o destaque para Cavalcante, ele é o verdadeiro sofredor das agruras do círculo. Ao menos é aquele que está sendo mostrado a sofrer no canto. Quanto a Farinata, lhe é reservado apenas a discussão no âmbito da política. Entretanto, segue o trecho (Versos 40-51):

“Quando à sua tumba aproximei-me mais,
Olhou-me um pouco e, quase desdenhoso,
‘Quem foram”, perguntou, ‘teus ancestrais?’

E eu, já de contenta-lo desejoso
Não lho escondi, mas tudo revelei,
O que tornou-o ainda mais cenhoso.

‘Tão duros na adversão à minha grei
Foram’, disse ele, ‘e a mim e aos meus parentes,
Que, por duas vezes, eu os expulsei.’

‘Expulsos’, respondi, ‘mas renitentes
Foram, voltandu duma e doutra prova,
E essa arte não tiveram vossas gentes.’”

Logo após esse trecho, Cavalcanti surge interrompendo o diálogo, e faz sua participação no canto. Quando da retomada do diálogo entre Dante e Farinata, da forma como abaixo se segue (versos 73-78):

“A outra grande alma, por cuja proposta
Tinha eu ficado, não moveu o peito
E o colo, nem mudou a feição composta;

E disse, retomando o meu conceito:
‘Se ignoram daquela parte a natureza,
Isso mais me atormenta que este leito;”

Nesse ponto continua a fala de Farinata, entretanto é nesse ponto que se mostra a pena de Farinata. Homem político, líder guibelino de período pouco anterior ao de Dante, possuía grande estima pela sua cidade natal, Florença, na qual era prioridade em sua vida política. Entretanto, ao descobrir que seu partido fora exilado e não voltara mais a Florença, para ele isso é motivo e maior sofrimento que o inferno. Nesse momento, segundo Erich Auerbach, fica implícito que essa dor de Farinata se dá devido à sensação de impotência em relação ao que ocorre entre os vivos. Ele ainda possui em sua essência suas características de quando era vivo: ainda é o líder político, que preza a honra e o caráter,e é esse o motivo de sua altivez. Não despreza o inferno com seu porte, mas é esse o destino que Deus deu a ele, não apenas a ele como a todos os mortos.



Dante segue, na Divina Comédia, uma concepção do Além na qual, não apenas no inferno, mas também no purgatório e no Paraíso, aquilo que o indivíduo costumava ser quando vivo persiste em sua alma depois de morto, de forma acentuada. Assim, estão em um contexto de imutabilidade, quanto ao destino de suas almas, final de contas, sofrerão aquela punição por toda a eternidade, ou ao menos até o dia do juízo final, quando suas almas se juntarão aos corpos novamente. Porém ali possuem um corpo espectral, o além possui uma historicidade, um curso de possíveis mudanças. Afinal, não está lá Dante, um humano vivo!

Nesse contexto, não apenas Farinata reproduz a força de seu caráter, sua nobreza, que se torna maior do que nunca no inferno, mas Cavalcante demonstra ali a admiração pelo seu filho e pelo espírito humano. Quando de sua participação no canto, segue um trecho abaixo (versos 55-63):

“Olhou-me à volta, parecendo intento
A achar quem estivesse ali comigo
E então, lhe sucedendo o desalento,

Disse, em pranto: ‘Se neste desamigo
Cárcere vais por primazia de engenho,
Por que o meu filho não está contigo?’

E eu respondi: ‘Não por mim mesmo eu venho:
Aquele que lá está meu rumo ordena,
Por quem quiçá, evadia o teu Guido empenho’”

Nessa tradução de Ítalo Eugênio Mauro, a palavra “disdegno” foi traduzida como empenho, no lugar de sua tradução “desdenho”. O desdenho do sujeito em questão, Guido Cavalcante, renomado poeta da época e amigo de Dante, é Virgílio. Há muitas teorias acerca do que significa esse desdenho, habitualmente se conclui que a frase possui sua importância pela resposta de Dante no tempo passado (“evadia”), que logo em seguida irá causar o desespero de Cavalcante, por achar que seu filho naquele momento está morto. Há de se considerar, porém, o desdém de Guido, apontado por Dante, se tratar do estilo literário. Guido é um poeta do estilo chamado Dolce Stil Nuovo.

O estilo, desenvolvido na segunda metade do século XIII, faz uma busca por uma poesia sincera de sentimentos, sem artificialidade e com uma nova idéia de nobreza. Criticavam os trovadores e seus sentimentos considerados artificiais, “hipócritas”, em que cantavam os amores a uma mulher alheia. Em um momento em que a aristocracia está decaindo e a burguesia começa a surgir com força no comércio, a nobreza está na moralidade e a mulher ideal é a mulher pura e íntegra. Dante em sua juventude escreveu poemas dentro desse estilo, o que inclui aí seu Vida Nova.

A evolução na poesia dantesca se dá no que se refere a retomada da poesia clássica, principalmente romana. A importância que Virgílio possui na Divina Comédia e o respeito ao qual Dante demonstra por ele mostra a grande importância de Virgílio na formação de Dante no decorrer de sua vida. Quando Dante diz que Guido desdenhou de Virgílio, está afirmando que Guido não se dedicou a poesia clássica, permanecendo sua obra no stil nuovo.

Retomando o canto, a reação de Cavancante aponta mais coisas sobre ele (Versos 67-72):

“Súbito ereto gritou: ‘Evadia?
Disseste? Então não vive? Então não mais
O doce lume os olhos lhe embacia?’

Quando foi percebendo que demais
Demorada ficava-lhe a resposta,
Caiu supino e não mostrou-se mais.”



Cavalcante faz uma série de três perguntas logo que ouve a resposta de Dante, cada vez mais aumentando o tom dramático da situação, até que faz a pergunta mais dramática e sensível “Então não mais o doce lume os olhos lhe embacia?”. O fato é que ele enxerga o filho morto em um futuro distante, mas não sabe em que momento isso ocorre. E essa sua paixão, não apenas pelo filho, mas pela vida terrena, elevados ao seu ponto mais extremo, faz de sua pena algo potencializado, ampliado.

E essa transcendência das agruras humanas para o além faz dele um teatro para o drama humano. Dante Alighieri se torna então um cristão que transforma o palco do divino em algo essencialmente humano. E é isso que torna sua poesia diferenciada das outras de seu período: no palco do divino, os humanos estão lá, aquele que lê a Comédia, enxerga sua própria imagem ali, reforçada pela nobreza de Farinata, pela dor de Cavalcante, ou pela adoração de Estácio por Virgílio (XXI do purgatório).

domingo, 14 de março de 2010

Escravos e libertos: a utilização dos negros nas guerras do Paraguai e civil estadunidense

Durante a segunda metade do século XIX, na América, ocorreram tanto no norte, com a guerra civil estadunidense, quanto no sul, com a guerra do Paraguai confrontos que se valeram grandemente da força dos homens pobres e em especial dos negros livres e escravos dessas regiões.
Tanto os exércitos brasileiros – e paraguaios também – quanto os estadunidenses utilizaram nas guerras os negros libertos e os escravos. A população brasileira, alguns anos antes da guerra, era de quase dez (10) milhões de habitantes, e aproximadamente um quarto dessa população era constituída de escravos . Nesse mesmo período na região norte do continente ocorria diversos movimentos na tentativa de estabelecer o fim da escravatura, principalmente, na região norte dos EUA a qual já possuía diversos estados onde não se utilizava dessa forma de mão-de-obra em oposição ao sul que utilizava fortemente essa forma de trabalho em suas plantations. Também nos EUA a população escrava constituía grande parte da sociedade chegando a atingir em 1860 um décimo da população total.
Nos EUA, durante o ano de 1860 acontecem dois fatos importantes referente às questões políticas, o primeiro é eleição à presidência de Abraham Lincoln, e o segundo, é a oficialização da secessão da Carolina do Sul do restante do país. Nesse mesmo ano ocorre o Congresso de Montgomery no Alabama e mais cinco estados juntam-se à causa da Carolina do Sul criando os Estados Confederados da América.
Durante a década de 1850 o Brasil envolveu-se em diversos conflitos na região do rio da Prata, um deles foi à declaração de guerra a Argentina em 1851, por esse governo não ter reconhecido a independência do vizinho Uruguai. O governo brasileiro obteve apoio de dois poderosos lideres políticos argentinos, inimigos de Rosas – então presidente –, eram eles: Justo José de Urquiza e Bartolomeu Mitre. Em 1852, o Brasil e seus aliados derrotaram e depuseram Rosas.
Com a adesão do Brasil no bloco que derrotaria o Paraguai, mostrou-se a debilidade na formação de um exército conciso, haja vista que o exército brasileiro era formado pelos contingentes da polícia e pela Guarda Nacional das províncias. Um ano após o início da guerra fazia-se necessário à convocação de voluntários, então Dom Pedro II assinou um decreto criando assim os Corpos de Voluntários da Pátria , no mesmo ano o termo voluntário passou a ser mera figuração, pois, a convocação passou a ser forçada .
Com o início da guerra civil aumentou muito o número de escravos que fugiam para o norte em busca de guarida nas milícias do norte. Um ponto importante que assemelha a guerra civil estadunidense à guerra do Paraguai é o recrutamento forçado que ocorre tanto do lado dos Confederados quanto do lado da União com o prolongamento da guerra.
No sul do continente o próprio D. Pedro II dava o exemplo libertando todos os escravos das fazendas nacionais para lutarem na guerra, de modo que pudesse aumentar o efetivo do exército brasileiro.
Ambas as guerras foram em grande medida a guerra de homens ricos e poderosos, e lutas de homens pobres e sem poder, segundo Toral no Brasil

além dos limites estreitos da cidadania todos são compreendidos como voluntários, bons para a guerra. Os mais aquinhoados têm mais condições de escaparem; os mais pobres recorrem ao auxílio dos matos. O que menos dispõe de meios de resistência é exatamente o escravo, que troca à enxada pelo mosquetão, deixava de obedecer ao capataz e entrega sua vida ao senhor oficial

e segundo Morison e Commager nos EUA “em ambos os lados, homens que pelas regras do recrutamento forçado, teriam de servir no exército, poderiam contratar um substituto – geralmente, um homem pobre e sem trabalho – para lutar em seu lugar”.

A efetiva utilização dos negros e escravos nas duas guerras.

No caso brasileiro os negros foram utilizados como linha de frente da guerra ou como moeda de troca numa possível fuga do alistamento por parte de homens “bem nascidos”, desde princípios da guerra – estima-se por baixo que 5,5% do efetivo do exército eram compostos por negros. Em grande parte os negros e escravos serviam aos “senhores oficiais” como se fossem empregados particulares dos mesmos.
Ao norte do continente os escravos eram usados quase que da mesma forma que no sul do continente, porém, no início da guerra os escravos e negros libertos eram utilizados em tarefas secundárias na lógica de guerra porque não deveria dar armas nas mãos dos escravos e nem dos negros libertos. Outro ponto dissonante em relação aos dois países citados é quanto à utilização dos escravos. Nos EUA havia diferenças entre sul e norte do país, tendo o norte utilizado escravos desde meados de 1862 de forma efetiva nos combates e o sul utilizando-se dos escravos apenas nos tempos finais da guerra.
Os escravos e negros livres eram vistos pelos sulistas estadunidenses brancos como inferiores, e por isso como mera mercadoria não podendo ter nenhum direito como cidadão dos EUA. Essa visão era aceita amplamente no sul pelas forças dominantes devido à própria lógica escravagista que se impunha na região. No Brasil havia a discriminação interna por parte das regiões sulistas e externa que provinha diretamente do Paraguai

na época da guerra (1864-1870), no Paraguai, o negro era, antes de tudo, o inimigo. O exército brasileiro era o exército macacuno, e seus lideres, segundo a propaganda lopizta, macacos que pretendiam escravizar o povo paraguaio, conduzindo-os da liberdade à escravidão


embora o Paraguai também utilizasse de escravos e negros livres na guerra.
As disputas pelo poder governamental nos EUA sempre foram constantes bandeiras do sul e do norte, no entanto, com a proibição inglesa do tráfico negreiro essa disputa se acirrou ainda mais, tendo em vista que o sul escravagista defendia o prolongamento da escravidão, já o norte de grande influência liberal – e que havia fundado poucos anos antes o Partido Republicano – e progressista de visão ideológica contraria a escravidão, como tão bem representa o discurso do até então candidato à presidência Abraham Lincoln em Quincy no dia 15 de outubro de 1858, dois anos antes de ganhar as eleições

a diferença entre os homens que crêem que a escravidão é uma injustiça e os que crêem que o não é. O Partido Republicano crê que ela é injusta; nós cremos que é uma injustiça moral, social e política. Cremos que é uma injustiça que não se limita aos habitantes dos estados em que existe, mas que é uma injustiça que na sua tendência, quando menos, afeta a existência de toda a nação. Precisamente porque cremos que é injustiça como qualquer outra, na medida em que podemos evitar que aumente, e tratamo-la de tal modo que com o correr do tempo haja alguma esperança de que desapareça...
Acrescentarei que se há alguém entre nós que não crê que a escravidão é injusta nos três aspectos que mencionei, ou em algum dos três, esse tal está fora do seu lugar e tem de abandonar as nossas fileiras. Se, por outro lado, há no Partido Republicano algum homem que se irrita com os inevitáveis frutos da sua atual existência, que se irrita com as garantias constitucionais que hoje lhe servem de salvaguarda e que quer proceder com desconhecimento delas, este também está fora do seu lugar se permanecer entre nós.

A guerra apesar de dura e cruel possibilitava aos escravos vislumbrar a liberdade, pois, os escravos que participassem da guerra quase sempre eram libertos “a guerra representou uma oportunidade de melhorar de vida, de deixar de ser propriedade de outrem, ou mão-de-obra barata, para ser homem de respeito, soldado, defensor da pátria” . Isso tanto no Brasil como nos EUA. Contudo, não quer dizer que os escravos só obtiveram a tão sonhada liberdade com a precipitação das guerras, pois, a vida cotidiana dos escravos esteve sempre entrelaçada de múltiplas expressões de resistência, como: recusa ao trabalho, diminuição do ritmo de produção, sabotagem das ferramentas utilizadas no trabalho, furto e compra da liberdade – para os escravos de ganho ou os que trabalhavam em funções que exigissem especialização. A mais difundida, porém, continuava a ser a fuga.
As fugas de escravos no Brasil ocorreram desde os primeiros tempos da escravidão, todavia, no século XIX essas fugas se intensificaram pela própria pressão interna como também pelas forças da Inglaterra e do capitalismo em expansão. No Brasil admitia formas variadas, mas, a procura por quilombos e quilombolas eram as maiores, quando não refugiavam-se na casa de alguns negros libertos.
Na parte norte do continente as fugas quase sempre se davam para o norte dos EUA e influenciadas por romances como o “Correndo mil milhas rumo à liberdade” e com a ajuda de membros da estrada de ferro subterrânea que possuía a influência direta das sociedades abolicionistas do norte e que a construíra e mais ou menos a estruturara em meados de 1850. Essa rota conduzia os escravos fugitivos para o norte do país e para o Canadá.
Nos EUA a abolição da escravatura só ocorreu em 31 de janeiro de 1865 com o pedido oficial de rendição sulista feito pelo general Robert Lee ao general nortista Ulisses Grant. Assim terminava a guerra civil estadunidense que iria impor a lógica liberal e capitalista do norte ao restante do país. A guerra do Paraguai só terminaria cinco anos depois com a vitória dos aliados, cujo comandante brasileiro era o Conde D’eu que abolira a escravidão naquele país em 1869. O término da escravidão no Brasil só se oficializaria no ano de 1888 com a promulgação da Lei Áurea, pela princesa Isabel.

1 GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Editora Ática, 1978.
2 MARQUES, Maria E. C. Magalhães. A guerra do Paraguai: 130 anos depois. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 1995.
3 SCHULZ, John. O exército na política: Origens da intervenção militar (1850-1894). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994.
4 TORAL, André. Imagens em Desordem: Iconografia da guerra do Paraguai (1864-1870). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.
5 MORISON, Samuel E. e COMMAGER, Henry S. História dos Estados Unidos da América – Tomo II. São Paulo: Edições Melhoramentos, s/d.
6 TORAL, André. op.cit., 2002.
7 MORISON, Samuel E. e COMMAGER, Henry S. op.cit.. s/d.
8 MARQUES, Maria E. C. Magalhães.op.cit., 1995.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Propaganda e Política: A Reformulação da Verdade

A democracia nos moldes que possui atualmente é algo bastante recente no Brasil se comparado a outros países, tendo sido desenvolvida nos anos de 1980, quando da abertura política, sendo essa conseqüência do processo de término do período militar no país. Apesar dessa recente redemocratização do país, o marketing político dentro do processo eleitoral brasileiro demonstra uma grande força, se comparado, por exemplo, às eleições em outros países latino-americanos. Partindo desse princípio, vamos tentar mapear brevemente alguns detalhes acerca do processo de marketing político nas eleições políticas e a importância que adquire no correr do tempo. Afinal de contas, o quão severo é o peso das ações do marketing político nas decisões de seu público alvo, o eleitor?


A força do marketing político e a valorização da propaganda eleitoral são descobertas em meados dos anos de 1950, tendo como início as eleições norte-americanas de 1952, quando Eisenhower se torna o primeiro candidato a algum cargo político a contratar os serviços de uma agência de publicidade para sua campanha, assim como realizar pesquisas de boca de urna. A vitória de Eisenhower, após 20 anos de domínio democrata no principal cargo do governo norte-americano, abriu os olhos para a força desse tipo de propaganda.


Em 1960, as eleições presidenciais norte-americanas mais uma vez mostram a força que pode ter o trabalho de imagem por trás de um candidato. Em uma disputa até então acirrada, há poucos dias das votações abrirem, organizou-se o primeiro debate entre os candidatos a ser transmitido pela televisão. Atribui-se a vitória de Kennedy a esse debate, no qual se expôs de forma mais imponente que seu adversário, Richard Nixon, investindo na jovialidade e vigor aparentes. Em contrapartida, a TV expôs um candidato com ares de insegurança: Nixon apresentava sérios problemas relacionados a hiperidrose, deixando uma má impressão, tanto no aspecto estético, quanto na figura que um político daquele porte deve apresentar.


Eis então que vem a tona a constatação: as mídias, principalmente televisiva, dispunha de uma força e poder decisivos perante o eleitorado. Se faz necessário o trabalho voltado a imagem do indivíduo para que lê se encaixe em determinado perfil, aquele em que o eleitor identifique o seu representante.


Dessa forma como emerge, o marketing político no Brasil se iniciou cedo, no período militar havia o trabalho sobre a imagem do candidato, em que as aparências mostradas na TV tinham importância mais significativa que aquilo que ele dizia. O trabalho de marketing com a qualidade que se tem hoje no Brasil só viria a surgir nos anos de 1980 com a abertura política, trazendo como grande exemplo as eleições de 1989.


Com a abertura política e a volta do pluripartidarismo, a quantidade de candidatos a presidência da república se tornou grande. Entre eles, nomes já consagrados na política brasileira, como Mario Covas, Paulo Maluf e Leonel Brizola. Entretanto, nesse cenário surge em poucas semanas um candidato, até então desconhecimento em âmbito nacional e que viria com uma estratégia de campanha avassaladora. Fernando Collor investia não apenas na sua aparência, mas sua imagem como um possível herói da pátria em um momento em que o governo ali vigente estava com grande índice de reprovação lhe proporcionou um grande espaço na disputa ao pleito de presidente.


Naquele momento de insatisfação com o governo, todos os candidatos se colocavam como críticos de Sarney, trazendo propostas ou planos econômicos para a salvação da economia brasileira. Collor aparece nesse cenário com a promessa de acabar com a corrupção, afirmando que o faria de uma só vez, de forma firme e decisiva. Decisivo, aliás, para sua eleição foi seu bom relacionamento com as redes de televisão, em que, com o apoio das Organizações Globo, obteve vantagens na divulgação do último debate antes da definição do segundo turno em relação a seu adversário, Lula.


Assim sendo, Collor explorou de forma mais eficiente que seus adversários alguns elementos relacionados ao marketing político. Quando se autodenominando “caçador de marajás”, ou acusando o então presidente José Sarney de incompetente ou mesmo corrupto, deixava claro que possuía como visão da situação do país como desfavorável. Essa tendência, característica de candidatos oposicionistas, segue uma linha na qual o modelo situacionista não é favorável ao país, e possui como discurso a proposta da reversão do quadro. Aliado a isso sua jovialidade e o apoio dos meios de comunicação, monta-se o quadro então, de um candidato a primeiro momento desconhecido no país, jovem e com a promessa de mudança, em que, mais uma vez, o trabalho de marketing político tomou parte, seus discursos variavam conforme as amostragens mostravam uma tendência daquilo que a população tendia a pensar, e, consequentemente, a desejar ouvir.


A partir desse caso exposto, da eleição de Collor em 1989, podem-se colocar em conta algumas das formas sob as quais o marketing político é utilizado como estratégia de campanha. Uma estratégia política eficiente no fim das contas, deve se valer de elementos no qual são possíveis de ser detectados apenas com amostragens com alguns poucos eleitores no qual se pode analisar as expectativas do eleitorado quanto às suas expectativas em relação aos candidatos, e a forma com a qual dialogam com o momento vigente, com a administração sob a qual a região está vivendo.


Sem sombra de dúvidas essa amostragem tem sua utilidade, e, porque não, importância. Ao contrário do que habitualmente se diz o marketing político não é uma ferramenta unilateral de alienação e manipulação do eleitorado. Essa ferramenta só mostra sua eficiência se a estratégia utilizada estiver de acordo com as expectativas e visão de mundo do eleitorado. Dessa forma, o eleitorado esboça sua reação diante da ação esperada por parte do candidato.


Para que se tome esse conhecimento acerca das expectativas dos eleitores, aqueles que trabalham por trás do candidato no seu marketing, em momento prévio da campanha, preparam a amostragem de opinião, em que pequeno grupo de eleitores são encaminhados a uma determinada sala, e ali, um mediador coloca em ênfase assuntos a serem discutidos. Do lado de fora da sala, em local onde podem ver, mas não ser vistos, os especialistas fazem a análise das impressões dos eleitores.


Nesse momento se questiona quanto a expectativas quanto a região em questão, ou ao país, quanto aos índices de aceitação ou rejeição dos candidatos, ou mesmo, quando o trabalho é realizado durante a campanha, é feito uma demonstração dos vídeos publicitários das campanhas para se analisar quais momentos das propagandas agradam ou desagradam o eleitor. Assim, essa amostragem tende a guiar o foco da campanha, mostrando no caso os rumos que devem ser tomados ou se o foco deve continuar a ser o mesmo.


Um exemplo recente é a ascensão de Gilberto Kassab para o segundo turno das eleições municipais de 2008 em São Paulo, no qual foi bem explorado a visão que o público tinha da atual gestão, de forma positiva, e explorando um discurso e uma tendência a “melhorar o que já está bom”. Essa imagem foi explorada nos comerciais de TV com elementos que trazem um cenário positivo ao eleitor: jingles em tons animados, mostrando otimismo, animações, e a própria imagem do candidato com as mangas arregaçadas esboçando um sorriso e boa disposição chamando o público a trabalhar pela cidade. Ficou evidente esse contraste em relação a campanha de seu principal concorrente naquele momento, Geraldo Alckmin, com uma campanha apática e desorientada.


Campanha a qual, pode-se afirmar, caiu em um conceito explanado por Rubens Figueiredo em seu Marketing Político e Persuasão Eleitoral, em sua reta final, quando das pesquisas de opinião apontarem o empate técnico entre Gilberto Kassab e Geraldo Alckmin, os eleitores de Alckmin caíram na chamada espiral do silêncio. O fenômeno ocorre no momento em que, em uma situação de equilíbrio entre dois candidatos, apesar desse equilibro há um deles que está envolto em uma esfera de maior expectativa.


Isso acarreta que, em determinado momento decisivo de uma campanha, um desses candidatos, no caso exemplificado, Gilberto Kassab, acaba por ter seus eleitores mais ativos, demonstrando mais facilmente e mais frequentemente sua opção de voto e mais propício a vestir o material de campanha, seja “bottons”, camisetas, bandeiras. Em contrapartida, os eleitores de Geraldo Alckmin, mesmo que inconscientemente, cientes de sua desvantagem, demonstram certa apatia, e se acanham em demonstrar o mesmo apoio ao seu candidato. Eis aí o fenômeno chamado espiral do silêncio.


Entretanto, não se pode dizer que o marketing político é uma ferramenta de total eficiência para o candidato. Como já dito mais ao início desse trabalho, a propaganda está condicionada às impressões e percepções do eleitorado. Nesse ponto, até mesmo o exemplo acima citado pode ser utilizado: o candidato Geraldo Alckmin em suas propagandas comerciais demonstrava certa apatia, certa falta de vontade em sua candidatura à prefeitura na cidade de São Paulo. Não cabe a nós o mérito da discussão de uma apatia real, mas o que traz suas conseqüências é a idéia implícita de uma apatia adquirida através das impressões adquiridas pelo eleitorado após sua derrota nas eleições presidenciais de 2006.


Essa percepção do eleitorado quanto a Alckmin é um fator que não apenas o prejudica, mas que, nesse momento, acaba sendo fator de força para a campanha de Kassab, mais enérgica, vigorosa. Esse é o aspecto em que o candidato se torna um produto a venda pelos especialistas em marketing. Eles podem transformar o produto em algo mais atraente, entretanto, o próprio produto deve ser atrativo ou demonstrar ser de boa qualidade. A aparente indisposição de Alckmin não transmitia uma disposição do candidato a trabalhar pela cidade, a questão que ficava para os eleitores quando assistiam às suas propaganda era algo como “Qual o objetivo do candidato?”. E o objetivo não se mostrava aparente.


Assim, temos que o marketing político é uma ferramenta poderosa, de ilustração do candidato como um produto eficiente em potencial, mas que, entretanto não possui uma relação unilateral com o eleitorado. Diferentemente disso, a campanha eleitoral através do marketing só terá sua força, sua eficiência se conseguir obter uma leitura das perspectivas e de tudo aquilo ao qual o eleitorado tem em mente, ou seja, suas impressões. O candidato que na inspira confiança ou que não transmite o sentimento que o eleitor pretende enxergar em seu candidato, mesmo que com uma boa estratégia de campanha e um marketing agressivo, tenderá ao insucesso, mostrando assim que o marketing político é suscetível a falhas.

Resenha sobre a obra "o sagrado e o profano"

Localização da obra:

Eliade, Mircea. O sagrado e o profano – a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes. 1° edição, 2001, 191 páginas.

Características da obra:

A obra supra citada possui como uma das características principais a busca de uma herança, seja das sociedades arcaicas ou das mais contemporâneas – de certo modo – em relação aos mitos e ações dos seres primordiais (deuses, heróis, etc.), a visão cíclica da história para essas sociedades, em que suas ações são inspiradas nas ações primordiais dos deuses e dos heróis, as relações entre o ser humano e a natureza e suas significações e a constante oposição entre o moderno e arcaico, seja, em relação ao homem, as religiões, aos mitos, etc., sem mencionar a questão do sagrado e do profano.

Sobre o autor:

Mircea Eliade nasceu no ano de 1907 em Bucareste, onde realizou seus estudos universitários, formando-se em Filosofa. Depois disso, partiu para Índia, tendo ali estudado o sânscrito e as filosofias do sudeste asiático.

Apartir desses estudos, especialmente a respeito da ioga, pode realizar sua tese de doutoramento publicada em 1936. A partir de então, Eliade adquiriu renome como professor de História das Religiões, tendo lecionado na Universidade de Bucareste, na École des Hautes Études de Paris, no Instituto do Extremo Oriente de Roma, no Instituto Jung de Zurique e na Universidade de Chicago. Foi também Doutor Honoris Causa de numerosas universidades de todo o mundo. Premiado em 1977 pela Academia Francesa, recebeu a Legião de Honra.

Eliade também trabalhou como adido cultural e de imprensa nas representações diplomáticas romenas em Londres e Lisboa até 1945. Posteriormente, estabeleceu-se em Paris, e, finalmente, em Chicago, onde faleceu em 1986.

Propostas da obra:

Aparece entre tantas outras a proposta de entendimento dos mitos e mitologias criadas pelas velhas civilizações, sociedades, tribos e a grande importância que essas formas de relacionamento dos seres humanos com a natureza, com a história, com o conhecimento, etc., possibilitaram uma melhor capacidade de explicação do mundo, da vida e da morte.

A própria visão do homem como ser participante de um conjunto maior – visão não compartilhada pelo homem moderno –, no caso, o que o autor denomina de “o cosmos” necessitava de um entendimento e de uma inter-relação do ser humano com a natureza e os fenômenos naturais, dando espaço para a criação de cosmogonias e cosmologias.

E, por último, a grande importância que uma obra como essa possui para uma maior compreensão – no meu caso como potencial historiador – do homem em sua complexidade, pois, a religião, e principalmente, a religiosidade são parte fulcral para o entendimento do homem e da sociedade, seja ela a arcaica ou a moderna.

Obra:

Essa obra de Mircea Eliade inicia-se com uma discussão referente ao próprio título do livro, que é a questão do sagrado e do profano e qual ou quais fatores são definidores dessas classificações. Sobre tais pontos o autor apresenta a concepção dos povos arcaicos da seguinte maneira, o sagrado – revela a realidade absoluta e torna possível a orientação – é tudo aquilo já consagrado aos deuses ou realizado pelos heróis civilizadores in illo tempore, em outras palavras tudo aquilo já cosmicizado, que é real e faz parte do “cosmos”. O profano é tudo aquilo que escapa dessa lógica, e que em certo sentido não está no real nem no “cosmos”, e sim, ainda se encontra no “caos”, ou seja, fora da ação primordial dos deuses sobre a “coisa” conhecida pelo ser humano, portanto, podendo fazer parte do sagrado quando realizado o ritual ou ato de passagem – imitando os deuses – que possibilite inclui-lo no “cosmos”. Porém, como explicita o autor

é preciso acrescentar que uma tal existência profana jamais se encontra em estado puro. Seja qual for o grau de dessacralização do mundo a que tenha chegado o homem que optou por uma vida profana não consegue abolir completamente o comportamento religioso[1].

A formulação desta lógica mental por parte das sociedades arcaicas leva os seres humanos a uma visão da história de forma cíclica e teleológica – em grande parte dessas sociedades –, pois, entendem que o mundo só pode ser conhecido e vivido se primeiramente for conhecido os atos dos deuses e dos heróis sobre essas mesmas “coisas” e que o organismo vivo ou “cosmos” possui um começo, um final, um recomeço, e assim por diante, sendo o seu início a forma mais pura, como atesta Eliade (...) a Vida não pode ser reparada, mas somente recriada pela repetição simbólica da cosmogonia, pois, como já dissemos a cosmogonia é o modelo exemplar de toda criação[2].

O ser humano tende a sacralizar tudo o que existe, inclusive o espaço e o tempo como forma de inserir-se no “cosmos”. Essa busca incessante do ser humano de consagrar aos deuses suas vidas levou-os a organizarem o tempo de forma lógica para que através de festas realizadas periodicamente pudessem rememorar os feitos de in illo tempore e em relação ao espaço a construir templos, igrejas, etc,. como forma de consagrar aquele local aos deuses e por extensão sua cidade ou aldeia – chegando a sacralização de sua moradia – para poder estar inserido no centro do mundo ou “cosmos”. Essa mesma concepção não é compartilhada pelo homem (ser humano) moderno ou a-histórico, pois, esse tende a dessacralizar tudo o que existe por estar fixado em outra lógica de vida, em geral.

O tempo tem, assim como o espaço, que ser consagrado por meio de um ritual que possa ser recuperado de tempos em tempos para uma renovação do mundo e do próprio tempo considerado sagrado, não participando da duração temporal que o precede e o sucede. O tempo sagrado é por excelência aquele original e primordial e por conta de um regresso simbólico é que o ser humano torna-se contemporâneo dos deuses e dos atos primeiros da criação. No entanto, ainda existe o tempo profano ou o tempo corrente da vida que não é consagrado, e, além disso, o homem (ser humano) a-religioso que concebe o tempo sempre como uma experiência puramente humana onde aos deuses não é atribuída nenhuma participação.

Há, no entanto, certas diferenças entre religiões mais complexas e que abordam o tempo como tempo histórico e não como tempo cósmico, no caso do judaísmo e do cristianismo, este último indo ainda mais longe ao santificar o tempo histórico com a encarnação do Deus na pessoa de Jesus Cristo e dessa forma saindo da esfera mítica e adentrando na esfera histórica no que concerne à realização dos rituais litúrgicos de consagração cristã, portanto, a questão do “eterno retorno” não se aplica nesses casos como nas religiões das sociedades arcaicas.

Uma outra fonte – e talvez onde o homem arcaico mais tenho bebido – e a relação do mesmo com a natureza e com o cosmo (astros celestes) como é muito bem exposto na obra. A natureza tende a ser sacralizada pelo ser humano por sua força e pela aparência misteriosa dos seus acontecimentos como erupções vulcânicas, terremotos, tempestades, etc., esses fatos eram relacionados com a irá dos deuses por uma desobediência humana e do afastamento do homem em relação aos deuses ou Deus como é atestado no velho testamento da bíblia cristã em que Jeová pune o povo escolhido por diversas vezes em diversas ocasiões onde o povo de Israel se afastava dos mandamentos de Jeová, por exemplo, a história de Noé e do dilúvio.

Em relação aos astros e seus significados mítico-religiosos o ser humano se afastou gradativamente dessas divindades – o inverso também é fato –, pois, como bem claro é exposto na obra através de inúmeros exemplos de diversas cosmologias após terem criado o universo e o mundo estes deuses que são identificados com os seres celestes (astros) retiraram-se da Terra e regressaram para suas moradas no céu, porém, deixaram na Terra seus filhos que pouco a pouco acuparam os espaços deixados no coração e mente dos seres humanos, entretanto, esses filhos são identificados muito mais com a vida mundana do que com a vida cósmica. Isso não quer dizer que os deuses celestes foram esquecidos, mas sim, afastados do dia-a-dia humano e conservado com grande força por meio do simbolismo, principalmente, nas religiões e cosmologias politeístas.

O simbolismo presente na natureza foi, é e aparentemente será uma grande fonte para elucubrações humanas referente a explicações do mundo por uma forma religiosa, isso fica claro na passagem cristã sobre o batismo em que o homem renasce para uma nova vida após a sua imersão nas águas – símbolo tanto da morte como da vida. Contudo, é preciso perceber que desde o final da “idade média” o ser humano caminha pra uma dessacralização da natureza.

“O primeiro fato com que deparamos ao adotar a perspectiva do homem religioso das sociedades arcaicas é que o mundo existe porque foi criado pelos deuses, e que a própria existência do Mundo quer dizer alguma coisa, que o Mundo não é opaco, que não é uma coisa inerte, sem objetivo e sem significado. Para o homem religioso, o Cosmos “vive” e “fala”. A própria vida do Cosmos é uma prova de sua santidade, pois ele foi criado pelos deuses e os deuses mostram-se aos homens por meio da vida cósmica”.

É preciso perceber essa perspectiva tão presente no homem arcaico e que está tão longe do homem moderno que é a de perceber que o homem (ser humano) faz parte de um todo maior e de um sistema vivo que o autor chama de “cosmos”. Outros fatores de grande importância para o homem arcaico são relativos aos ritos de passagem como o nascimento, o crescimento físico e intelectual (criança, rapaz, homem no caso masculino e criança, moça, mulher no caso feminino), casamento e morte, e que com o avanço racional e tecnológico foi fortemente deixado de lado pelo homem moderno e a-religioso. Um fator também de grande importância é o já mencionado fator da habitação, seja ele, o corpo humano, a casa, o templo ou a cidade que deve ser consagrada aos deuses e prioritariamente deve oferecer uma passagem (abertura) para a comunicação com o transcendente, ou seja, com o campo cósmico.

Segundo Mircea Eliade o homem a-religioso só aceita um modelo de humanidade dentro da condição humana da existência, sendo o sagrado um empecilho para obtenção da liberdade da humanidade, porém, segundo o autor até mesmo esse homem está impregnado de concepções religiosas degeneradas ou inconscientes mesmo que em pequena proporção. Portanto, a religiosidade faz parte do homem enquanto ser complexo.

Comentários críticos sobre a obra:

A obra “o sagrado e o profano” de Mircea Eliade é muito importante para uma melhor compreensão da circularidade existente nas sociedades arcaicas em relação aos rituais e atos que caracterizam a consagração dos objetos, do espaço, do tempo, da habitação, etc., - mesmo que sem proximidade espacial e física dessas sociedades – aos deuses e como a questão do sagrado e do profano era abordada pelos antigos e quais as concepções e determinações para que algo fosse considerado sagrado (real, cósmico) ou profano (irreal, caótico). Além disso, é importante para o historiador pelo fato de que aborda um aspecto da vida humana em que cada vez mais e renegada pelo homem que é a questão religiosa enquanto forma efetiva e material da complexidade humana, pois, nos dias de hoje a religiosidade é vista como irracionalidade do ser e de fuga da realidade, quando na verdade se insere na perspectiva de explicação do mundo como tantas outras formas.

No entanto, é preciso para o pesquisador – e talvez essa não seja nem a preocupação do autor – procurar entender essa relação do homem com a natureza – principalmente, na relação do homem moderno – em contato com a religião e a política, a religião e a economia, a religião e o poder, pois, todas essas são partes que se confundem na relação societária em determinadas circunstâncias.



[1] Eliade, Mircea. O sagrado e o profano – a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p.27.

[2] Idem, p.74.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Blog em gestação

Amigos, inimigos, simpatizantes e familiares: o blog já possui uma data para seu nascimento, com conteúdo e uma apresentação da proposta ao qual ele pretende alcançar. Ele ganhará vida a partir do próximo dia 20 de Fevereiro, para todos aqueles que quiserem conferir.

Estejam bem até lá.